A EXISTÊNCIA DEDEUS
UM DEBATE ENTRE BERTRAND RUSSEL E
O PADRE F. C. COPLESTON, S. J.
Este debate foi, originariamente, irradiado em 1948, no Terceiro
Programa da B.B.C. Foi publicado em Humanitas, número correspondente ao outono
de 1948, e é aqui reimpresso com a amável permissão do Pde Copleston.
COPLESTON:
Como vamos discutir a existência de Deus, talvez fosse bom chegássemos a
um acordo provisório quanto ao que entendemos pela palavra “Deus”. Presumo
queremos significar um ser pessoal supremo – distinto do mundo e
criador do mundo. Concordaria o senhor – pelo menos provisoriamente
– em aceitar essa expressão como significando “Deus”?
RUSSELL:
Sim, aceito essa definição.
COPLESTON:
Bem, minha posição é a posição afirmativa de que tal ser existe
verdadeiramente, e que a Sua existência pode ser filosoficamente
provada. Talvez o senhor pudesse dizer-me se sua posição é de agnosticismo
ou de ateísmo. Em outras palavras: diria o senhor que a não-existência de Deus
pode ser provada?
RUSSELL:
Não, não diria tal coisa; minha posição é agnóstica.
COPLESTON:
Concordaria comigo que o problema de Deus é um problema de suma
importância? Concordaria, por exemplo, que, se Deus não existe, as criaturas humanas
e a história humana não podem ter outro propósito senão aquele que elas queiram dar a si
próprias, o que – na pratica – significaria, com toda a probabilidade,
o propósito imposto por aqueles que têm o poder de impô-lo?
RUSSELL:
De um modo geral, sim, embora, eu devesse fazer alguma restrição quanto
à sua última
cláusula.
COPLESTON:
Concordaria que se não existe Deus – se não existe nenhum Ser absoluto –
não podem existir quaisquer valores absolutos? Em outras palavras: concordaria que não
existe um bem absoluto de onde resulta a relatividade dos valores?
RUSSELL:
Não, penso que essas questões são logicamente distintas. Tomemos, por
exemplo, osPrinc ip i a
Ethica, de G.E. Moore, onde ele
afirma que existe uma distinção entre o bem e o mal, e que ambos
são conceitos definidos. Mas ele não traz à baila a idéia de Deus em
apoio de sua afirmação.
COPLESTON:
Bem, deixemos o argumento do bem para depois, até chegarmos ao argumento
moral, e
apresentarei primeiro um
argumento metafísico. Gostaria de ressaltar principalmente o argumento
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metafísico
baseado no argumento de Leibniz acerca de “Contingência” e, depois, poderíamos discutir
o argumento moral. Que lhe parece se eu dissesse primeiro umas breves palavras
sobre o argumento metafísico e passássemos, depois a discuti-lo?
RUSSELL:
Parece-me um plano muito bom.
O argumento de contingência
COPLESTON:
Bem, tendo em vista a clareza, dividirei o argumento em fases distintas.
Antes de mais nada, eu diria que sabemos existem pelo menos certos seres no mundo que não
contêm em si mesmos a razão de sua existência. Por exemplo: dependo de meus pais e, depois, do
ar, de alimentos e assim por diante. Em segundo lugar, o mundo é simplesmente a totalidade real
ou imaginária, ou o agregado de objetos individuais, nenhum dos quais contém em si mesmo,
isoladamente, a razão de sua existência. Não existe qualquer outro mundo distinto dos objetos que
o formam, do mesmo modo que a raça humana não é algo à parte de seus membros. Por
conseguinte, eu diria que, já que objetos ou acontecimentos existem, e já
que nenhum objeto da experiência contém dentro de si mesmo a
razão de sua existência, esta razão, a totalidade dos objetos, deve ter uma
razão exterior a si mesma. Essa razão deve ser um ser existente. Bem, ou este ser é a
razão de sua própria existência, ou não é. Se o é, muito bem! Se o não é, temos de
prosseguir. Mas se prosseguirmos, nesse sentido, até o infinito, então
não há explicação alguma quanto à existência. Assim, eu diria que, a
fim de explicar a existência, devemos chegar a um ser que contém dentro de si
mesmo a razão de sua própria existência, isto é, que não possa não-existir.
RUSSELL:
Isso suscita muitíssimos pontos e não é muito fácil saber-se por onde
começar, mas penso que, talvez, em resposta ao seu argumento, o melhor ponto pelo qual
começar é a questão do ser necessário. A palavra “necessário”,
diria eu, só pode ser significativamente aplicada a proposições. E, com
efeito, somente às que são analíticas, isto é, àquelas que não podem ser
negadas sem se incorrer em autocontradição. Eu só poderia admitir um ser necessário se
existisse um ser cuja existência fosse autocontradit6rio negar-se. Gostaria de saber se o
senhor aceitaria a divisão de proposições de Leibniz em verdades de
razão e verdades de fato. Sendo a primeira – a verdade de razão –
necessária.
COPLESTON:
Bem, eu, certamente, não
subscreveria o que parece ser a idéia de Leibniz quanto a verdades de razão
e a verdades de fato, já que se diria que, para ele, só existem, em última
análise, proposições analíticas. Dir-se-ia, que, para Leibniz, as verdades de
fato são reduzíveis, em último termo, a verdades de razão. Isso é o
mesmo que dizer, a proposições analíticas, pelo menos para um espírito
onisciente. Bem, eu não poderia concordar com isso. Por um lado, seria deixar
de atender às exigências da experiência da liberdade. Não desejo defender toda a
filosofia de Leibniz. Usei de seu argumento, passando do contingente
ao ser necessário; e baseando o argumento sobre o princípio da razão suficiente,
simplesmente porque ele me parece uma breve e clara formulação daquilo
que é, a meu ver, o argumento metafísico fundamental a favor da existência de
Deus.
RUSSELL:
Mas, a meu ver, “uma proposição necessária” tem de ser analítica. Não
vejo que outra coisa poderá ela significar. E as proposições analíticas são sempre complexas
e logicamente um tanto ou quanto posteriores. “Animais irracionais são animais” é uma proposição
analítica; mas uma proposição como “Isto é um animal” não pode jamais ser analítica. Com
efeito, todas as proposições que podem ser analíticas são uns tanto
posteriores na construção de proposições.
COPLESTON:
Tome-se a proposição “Se existe um ser contingente, há um ser
necessário”. Considero essa proposição hipoteticamente expressa
como sendo uma proposição necessária. Se formos chamar de analíticas
a tôdas as proposições necessárias, então – a fim de evitar uma disputa quanto
à terminologia – eu concordaria em chamá-la analítica, embora não a
considere uma proposição tautológica. Mas a proposição só é uma proposição necessária supondo-se
que existe um ser contingente. Que há um ser contingente que realmente existe é coisa que
se tem de descobrir por experiência, e a proposição de que existe um ser contingente não é,
certamente uma proposição analítica, embora, como o senhor sabe, se eu afirmasse que há um ser
contingente, seguir-se-ia, necessariamente, que há um ser
necessário.
RUSSELL:
A dificuldade desse argumento é que não admito a idéia de um ser
necessário e não admito que haja qualquer sentido particular em chamar-se aos outros seres
“contingentes”. Essas frases, para mim, nada significam, salvo dentro
de uma lógica que rejeito.
COPLESTON:
O senhor quer dizer que rejeita esses termos porque eles não se
enquadram naquilo que se
chama “lógica moderna”?
RUSSELL:
Bem, não me é possível encontrar coisa alguma que pudessem significar. A
palavra “necessário” parece-me, é uma palavra inútil, salvo quando aplicada a
proposições analíticas, não a coisas.
COPLESTON:
Em primeiro lugar, que é que
o senhor entende por “lógica moderna”? Tanto quanto sei, existem
sistemas um tanto ou quanto diferentes. Em segundo lugar, nem todos os lógicos
modernos admitiriam, certamente, a falta de sentido da metafísica. Tanto o senhor
como eu conhecemos, de qualquer modo, um pensador moderno bastante eminente cujo conhecimento
da lógica moderna era profundo, mas que, por certo, não considerava a metafísica como uma
coisa falta de sentido ou, em particular, que o problema de Deus é
inexpressivo. Ora, mesmo que todos os lógicos modernos afirmassem
que os termos metafísicos não têm sentido, não se seguiria daí que tivessem
razão. A proposição de que os termos metafísicos não têm sentido, parece-me ser
uma proposição baseada numa filosofia pressuposta. A posição dogmática existente atrás disso
parece ser esta: o que não entra em minha máquina é não-existente,
ou não tem sentido; é a expressão de uma emoção. Estou simplesmente
procurando ressaltar que, quem quer que diga que um dado sistema da lógica moderna
constitui o único critério de significação, está dizendo algo mais do que
dogmático; está insistindo, dogmaticamente, em que uma parte da filosofia constitui o
todo da filosofia. No fim de contas, um ser “contingente” é um ser
que não tem em si próprio a razão completa para sua existência
– eis o que quero dizer quando me refiro a um ser contingente. O senhor sabe,
tão bem
106
quanto
eu, que a existência de nenhum de nós pode ser explicada sem referência a
alguma coisa ou a alguém fora de nós – nossos pais, por exemplo. Um ser “necessário”,
por outro lado, significa um ser que deve existir e que não pode
não-existir. O senhor poderá dizer que não existe tal ser, mas ser-lhe-á
difícil convencer-me de que não compreende os termos que estou usando. Se não
os compreende, como pode estar habilitado a dizer que tal ser não existe,
se é isso que, de fato, quer dizer?
RUSSELL:
Bem, há aqui certos pontos que não me proponho tratar minuciosamente.
Não afirmo, de modo algum, a falta de sentido da metafísica em geral. Afirmo que não
têm sentido certos termos particulares – não em qualquer terreno geral, mas simplesmente porque
não me foi possível deparar com uma interpretação desses termos
particulares. Não se trata de um dogma geral; é algo particular.
Mas, por ora, deixarei esses pontos de lado. E direi que o que o senhor esteve
dizendo nos traz de volta, segundo me parece, ao argumento ontológico de que
existe um ser cuja essência implica existência, de modo que sua
existência é analítica. Isso me parece impossível, e suscita, certamente,
a pergunta: Que é que se entende por existência? Quanto a isto, penso que
jamais se poderá dizer, significativamente, que um dado sujeito existe, mas
somente um sujeito descrito. E que a existência, com efeito, não é,
positivamente, um predicado.
COPLESTON:
Bem, o senhor diz, creio eu, que é má gramática, ou, antes, má sintaxe,
dizer-se, por exemplo: “T.S. Eliot existe”; dever-se-ia dizer, por exemplo: “Ele, o
autor de Murder in the Cathedral, existe”. Dirá, acaso, o senhor que a
proposição “A Causa do mundo existe” não tem sentido? O senhor
poderá dizer que o mundo não tem causa; mas não consigo ver de que maneira
poderá dizer que a proposição “a causa do mundo existe” não tem sentido. Coloquemos
isto em forma de pergunta: “Tem o mundo uma causa?” ou “A causa do mundo existe?” quase
todas as pessoas compreenderiam, certamente, a pergunta, mesmo que não estivessem de
acordo quanto à resposta.
RUSSELL:
Não há dúvida de que a pergunta “A causa do mundo existe?” é uma
pergunta que tem sentido. Mas se dissermos “Sim, Deus é a causa do mundo”, estaremos
usando Deus como um nome próprio; nesse caso, “Deus existe” não será uma enunciação que
tenha sentido; eis aí o ponto de vista que estou defendendo. Porque,
assim sendo, inferir-se-á que não poderá ser uma proposição analítica dizer-se jamais
que isto ou aquilo existe. Suponhamos, por exemplo, tomássemos
como tema “o círculo-quadrado existente”; pareceria uma proposição analítica
que “o círculo-quadrado existente existe”, mas não existe.
COPLESTON:
Não, não existe e, nesse caso, não podemos, certamente, dizer que não
existe a menos que tenhamos uma concepção do que é existência. Quanto à frase
“círculo-quadrado existente”, eu diria que não tem qualquer sentido.
RUSSELL:
Concordo inteiramente. Então eu diria a mesma coisa em outro contexto, com
referência a um “ser necessário”.
COPLESTON:
Bem, parece que chegamos a um impasse. Dizer-se que um ser necessário é
um ser que deve existir e que não pode não-existir tem, para mim, um sentido definido.
Para o senhor, não tem sentido algum.
RUSSELL:
Podemos insistir um pouco mais sobre este ponto, penso eu. Um ser que
deve existir e que não pode não-existir, seria, certamente, segundo sua opinião, um ser
cuja essência implica existência.
COPLESTON:
Sim, um ser cuja essência é existir. Mas eu não desejaria discutir a
existência de Deus partindo simplesmente da idéia de Sua essência, pois não me parece que
tenhamos ainda qualquer intuição clara quanto à essência de Deus. Penso que temos de argumentar
partindo do mundo da experiência com respeito a Deus.
RUSSELL:
Sim, percebo perfeitamente a distinção. Mas, de qualquer modo, para um
ser dotado de
conhecimento suficiente seria verdadeiro dizer: “Eis aqui este ser cuja
essência implica existência!”.
COPLESTON:
Sim, certamente, se alguém visse Deus, veria que Deus deve existir.
RUSSELL:
Quero dizer, pois, que existe um ser cuja essência implica existência,
embora não
conheçamos essa essência. Sabemos apenas que esse ser existe.
COPLESTON:
Sim, eu acrescentaria que não conhecemos a essência a priori. É somente a posteriori, mediante nossa experiência do mundo,
que chegamos a um conhecimento desse ser. E, então, afirmamos
que a essência e a existência devem ser idênticas – porque se a essência de
Deus e a existência de Deus não fossem idênticas, ter-se-ia, então, de encontrar
além de Deus alguma razão suficiente para essa existência.
RUSSELL:
De modo que tudo gira em torno dessa questão de razão suficiente, e devo
dizer que o senhor não definiu, de nenhum modo que eu possa compreender, essa “razão
suficiente”. Que é que entende por razão suficiente? Não se refere à causa, pois não?
COPLESTON:
Não necessariamente. Causa é uma espécie de razão suficiente. Somente um
ser contingente pode ter uma causa. Deus é a Sua própria e suficiente razão; Ele não é
causa de Si Mesmo. Por razão suficiente, em seu mais amplo sentido, entendo uma explicação
adequada quanto à existência de algum ser particular.
RUSSELL:
Mas quando uma explicação é
adequada? Suponhamos que eu, esteja prestes a produzir uma chama
com um fósforo. O senhor poderia dizer que a explicação adequada disso é que eu
o risco na caixa.
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COPLESTON:
Bem, por motivos práticos – mas, teoricamente, isso é apenas uma
explicação parcial. Uma explicação adequada deve ser, em última análise, uma explicação total, à
qual nada se possa acrescentar.
RUSSELL:
Nesse caso, posso apenas dizer que o senhor está à procura de algo que
não se pode obter, e
que não se deveria esperar obter.
COPLESTON:
Dizer-se que a gente não o encontrou é uma coisa; mas afirmar-se que não
se devia procurá-
lo me parece um tanto dogmático.
RUSSELL:
Bem, não sei. O que quero dizer é que a explicação de uma coisa é outra
coisa que torna a outra coisa dependente de uma outra coisa ainda, e que o senhor tem de
apreender em toda a sua inteireza esse triste esquema de coisas para fazer o que pretende – e
isso é coisa que não se pode fazer.
COPLESTON:
Mas o senhor irá dizer que não podemos fazê-lo, ou que não devíamos
sequer levantar a
questão deste triste esquema de coisas... de todo o universo?
RUSSELL:
Sim. Não creio que haja qualquer sentido nisso. Penso que a palavra “universo”,
em certas
conexões, é uma palavra útil, mas não creio que represente algo que
tenha sentido.
COPLESTON:
Se a palavra não tem sentido, não pode ser assim tão útil. De qualquer
modo, não digo que o universo é algo diferente dos objetos que o compõem (o que já indiquei
em meu breve sumário de prova); o que estou fazendo é procurar a razão, neste caso a causa dos
objetos – a totalidade real ou imaginária daquilo que constitui o que
chamamos Universo. O senhor diz, creio eu, que o universo – ou minha
existência, ou, se assim o preferir, qualquer outra existência – é
ininteligível?
RUSSELL:
Permita-me voltar à sua afirmação de que se uma palavra não tem sentido
não pode ser útil. Isso soa bem, mas não é, com efeito, certo. Tomemos, por exemplo, uma palavra
como “the” ou “than”. Não se pode indicar qualquer objeto que tais palavras
signifiquem, mas são palavras muito úteis; eu diria o mesmo de “universo”.
Mas, deixando-se este ponto, o senhor pergunta se considero o
universo ininteligível. Eu não diria ininteligível: penso que não tem
explicação. Inteligível, a meu ver, é coisa diferente. Inteligível tem
que ver com a coisa mesma, intrinsecamente, e não com suas relações.
COPLESTON:
Bem, minha opinião é que o que chamamos mundo é intrinsecamente ininteligível,
à parte a existência de Deus. Como vê,
não creio que a infinidade das séries de acontecimentos – refiro-me a séries horizontais, por assim dizer –
se tal infinidade pudesse ser provada, teria a mínima importância para o caso. Se somarmos
chocolates, obteremos, no fim, chocolates, e não um carneiro. Se acrescentarmos chocolates
até o infinito, obteremos, presumivelmente, um número infinito de chocolates. Se somarmos
seres contingentes até o infinito, ainda obteremos seres contingentes, e não um ser necessário.
Uma série infinita de seres contingentes será, a meu ver, tão incapaz
de se causar a si mesma como um ser contingente. Não obstante, o senhor diz,
creio eu,
não ser legítimo levantar a questão daquilo que explicará a existência
de qualquer objeto particular?
RUSSELL:
Está perfeitamente certo se, por “explicar”, o senhor quiser dizer que
está simplesmente
encontrando uma causa para o mesmo.
COPLESTON:
Por que nos determos em um determinado objeto? Por que não deveríamos
formular a
questão relativa à causa da existência de todos os objetos particulares?
RUSSELL:
Porque não vejo razão para pensar que haja qualquer causa. Todo conceito
de causa se deriva de nossa observação de coisas particulares; não vejo razão alguma para
supor que o total tenha qualquer causa.
COPLESTON:
Bem, dizer-se que não existe
qualquer causa não é o mesmo que dizer que não deveríamos procurar
uma causa. A afirmação de que não existe causa deveria vir – se é que deveria
vir – no final da investigação, e não no começo. De qualquer modo, se o total não
tem causa, então, segundo minha maneira de pensar, deve ser ele a sua própria causa, o que me
parece impossível. Ademais, a afirmação de que o mundo simplesmente
aí está, se feita em resposta a uma pergunta, pressupõe que a
pergunta tem sentido.
RUSSELL:
Não, não é necessário que ele seja a sua própria causa; o que estou
dizendo é que o conceito
de causa não é aplicável ao total.
COPLESTON:
Então o senhor concordaria, com Sartre, que o universo é o que ele chama
“gratuito”?
RUSSELL:
A palavra “gratuito” sugere que poderia ser uma outra coisa; eu diria
apenas que o universo
apenas aí está, eis tudo.
COPLESTON:
Na verdade, não vejo como pode o senhor excluir a legitimidade da
pergunta de como o total, ou o que quer que seja, aí se encontra. Por que algo e em lugar de nada?
– eis a questão. O fato de obtermos o nosso conhecimento da
causalidade empiricamente, partindo de causas particulares, não
exclui a possibilidade de se indagar qual a causa das séries. Se a palavra
“causa” não tivesse sentido, ou se se pudesse demonstrar que a opinião de Kant a respeito da
matéria, a questão seria ilegítima, concordo. Mas não me parece que o senhor afirme que a palavra
“causa” não tem sentido, e não suponho que o senhor seja kantiano.
RUSSELL:
Posso ilustrar o que me parece constituir o seu engano. Todo homem que
existe tem mãe, e parece-me que o seu argumento é, por conseguinte, que a raça humana deva
ter uma mãe; mas, obviamente, a raça humana não tem mãe... e eis aí uma esfera lógica
diferente.
COPLESTON:
Na verdade, não consigo ver
qualquer semelhança. Se eu estivesse dizendo que “todo objeto tem uma
causa fenomenológica e que, por conseguinte, as séries todas têm uma causa fenomenológica”,
haveria paridade. Mas não o estou dizendo. O que estou dizendo é que todo
objeto
110
tem uma
causa fenomenológica, se se insistir sobre a infinidade das séries – mas as
séries de causas fenomenológicas são uma explicação insuficiente das séries. Por
conseguinte, as séries não têm uma causa fenomenológica, mas uma
causa transcendente.
RUSSELL:
Isso sempre se pressupondo que não apenas cada coisa particular no
mundo, mas que o próprio mundo, como um todo, deva ter uma causa. Quanto a essa
pressuposição, não vejo fundamento algum. Se o senhor me apresentar algum fundamento, eu o
ouvirei.
COPLESTON:
Bem, uma série de ocorrências ou é causada ou não é causada. Se for
causada, deve haver, evidentemente, uma causa fora da série. Se não é causada, então é porque
é suficiente a si mesma e, se é suficiente a si mesma, é o. que chamo necessária. Mas não pode
ser necessária, já que cada membro é contingente, e já concordamos
que o total não constitui realidade, à parte quanto ao que concerne
aos seus membros. Por conseguinte, não pode ser necessária. Assim, não pode ser (causada)
não-causada; por conseguinte deve ter uma causa. E gostaria de observar, de
passagem, que a afirmação de que “o mundo simplesmente aí está e é inexplicável”
não pode sair da análise lógica.
RUSSELL:
Não quero parecer arrogante, mas parece-me que posso conceber coisas que
o senhor diz que a mente humana não pode conceber. Quanto ao que diz respeito a coisas
que não têm causa, os físicos nos asseguram que a transição do quantum individual nos átomos
não tem causa.
COPLESTON:
Imagino se isso não será simplesmente uma inferência temporária.
RUSSELL:
Pode ser que o seja, mas isso não revela que as mentes dos físicos não a
podem conceber.
COPLESTON:
Sim, concordo, certos cientistas – físicos – estão dispostos a admitir a
indeterminação dentro de um terreno restrito. Mas muitíssimos outros cientistas não estão tão
dispostos a isso. Creio que o Prof. Dingle, da Universidade de
Londres, afirma que o princípio de incerteza (uncertainty
principle) de Heisenberg nos diz algo
acerca do sucesso (ou insucesso) da presente teoria atômica
em
observações correlatas, mas não acerca da natureza em si, e muitos físicos
aceitariam tal opinião. De qualquer modo, não vejo de que modo os físicos possam deixar
de aceitar a teoria na prática, mesmo que não o façam em teoria. Não me é possível ver de que
modo à ciência poderia ser conduzida sob qualquer outra
pressuposição se não aquela da ordem e inteligibilidade na natureza. O físico
presume, pelo menos tacitamente, que há certo sentido em investigar-se a
natureza e nela procurar as causas de acontecimentos, assim como o detetive pressupõe
que há certo sentido em se procurar a causa de um assassínio. O
metafísico supõe que há sentido em procurar-se a razão ou a causa
dos fenômenos e, não sendo kantiano, acho que o metafísico tem tanta
justificação para a sua suposição quanto o físico. Quando Sartre, por exemplo, diz que o
mundo é gratuito, penso que ele não considerou suficientemente o
que a palavra “gratuito” implica.
RUSSELL:
Acho que parece haver, aí, um certo prolongamento
injustificável; um físico busca causas;
isso não
implica, necessariamente, que haja causas em toda a parte. Um homem pode
procurar ouro sem que presuma que haja ouro
em toda a parte. Se encontrar ouro, tanto melhor; se o não
112
COPLESTON:
Se essa é questão que, para o senhor, não tem sentido, não há dúvida de
que é muito difícil
discuti-la, pois não?
RUSSELL:
Sim, é muito difícil. Que é que o senhor diz: passaremos a outra
questão?
A experiência religiosa
COPLESTON:
Perfeitamente. Bem, talvez me fosse dado dizer uma palavra sobre a
experiência religiosa; depois, poderemos passar à experiência moral. Não considero a
experiência religiosa como uma prova estrita da existência de Deus, de
modo que o caráter da discussão muda um tanto, mas acho que é
verdadeiro dizer-se que a melhor explicação dela é a existência de Deus. Por
experiência religiosa, não me refiro simplesmente ao fato de o indivíduo sentir-se
bom. Refiro-me a uma percepção amorosa, mas não clara, de algum objeto que parece, irresistivelmente,
ao experimentador, algo que transcende o seu próprio ser, algo que
transcende todos os objetos normais da experiência, algo que não
pode ser descrito ou conceitualizado, mas de cuja realidade é impossível
duvidar-se – pelo menos durante a experiência. Eu afirmaria que isso não pode
ser explicado adequadamente, e de maneira cabal, como coisa simplesmente
subjetiva. A experiência básica verdadeira, seja como for, é mais facilmente explicada com base
na hipótese de que há verdadeiramente alguma causa objetiva de tal experiência.
RUSSELL:
Eu responderia a esse tipo de argumento que todo argumento que parte de
nossos próprios estados mentais para algo que está fora de nós é coisa muito arriscada.
Mesmo que todos nós admitamos sua validez, só nos sentimos justificados a fazê-lo, penso eu,
devido ao consenso geral. Se há uma multidão numa sala, e se lá houver um relógio, todos podem ver
o relógio. O fato de que todos podem vê-lo tende a fazer com que pensem que não se trata de uma
alucinação – ao passo que essas experiências religiosas tendem a ser muito pessoais.
COPLESTON:
Sim, com efeito o são. Estou falando, estritamente, de experiência
mística própria, e não incluo, por certo, diga-se de passagem, aquilo a que se dá o nome de
visões. Refiro-me. simplesmente à experiência, e admito inteiramente que é ela indefinível,
do objeto transcendente ou do que parece ser um objeto
transcendente. Lembro-me de ter ouvido Julian Huxley dizer, numa conferência,
que a experiência religiosa, ou experiência mística, é uma experiência tão
verdadeira como a de a gente se apaixonar, ou apreciar poesia ou arte. Bem, creio
que, quando apreciamos poesia ou arte, apreciamos poemas definidos, ou uma obra de arte
definida. Se nos apaixonamos, bem... apaixonamo-nos por alguém e não
por ninguém.
RUSSELL:
Permita-me interrompê-lo um
momento. Nem sempre, de modo algum, é esse o caso. Novelistas
japoneses jamais acham que conseguiram êxito a menos que um grande número de pessoas
reais se suicide por amor à heroína imaginária.
113
COPLESTON:
Bem, devo aceitar sua palavra quanto ao que se refere a tais
acontecimentos no Japão. Não me suicidei, alegra-me dizê-lo, mas fui
grandemente influenciado, ao dar dois passos importantes em minha
vida, por duas biografias. Contudo, devo dizer que vejo pouca semelhança entre
a influência real exercida sobre mim por tais livros e a experiência
mística propriamente dita, isto é, até o ponto em que um estranho (outsider) pode ter uma idéia de tal
experiência.
RUSSELL:
O que quero dizer é que não consideraríamos a Deus como estando no mesmo
nível das
personagens de uma obra de ficção. Admite o senhor que há aqui uma
distinção?
COPLESTON:
Certamente. Mas eu diria que a melhor explicação não parece ser a
explicação puramente subjetivista. É possível, por certo, uma explicação subjetivista, no
caso de certas pessoas em que há pouca relação entre a experiência e a
vida, no caso de pessoas iludidas, alucinadas e assim por diante.
Mas quando deparamos com o que se poderia chamar o tipo puro, digamos São
Francisco de Assis; quando se tem uma experiência que resulta num extravasamento
de amor criativo e dinâmico, a melhor explicação disso, parece-me, é a existência real de
uma causa objetiva da experiência.
RUSSELL:
Não estou afirmando, de maneira dogmática, que não haja um Deus. O que
estou dizendo é que não sabemos que há. Só posso me apoiar no que está registrado, como
deveria apoiar-me em outros registros, e verifico que muita coisa é registrada – e estou
certo de que o senhor não aceitaria coisas acerca de demônios, diabos e
coisas semelhantes. No entanto, essas coisas estão registradas exatamente
no mesmo tom, e exatamente com a mesma convicção. Pode-se dizer do místico, se
sua visão é verídica, que ele sabe que existem demônios. Mas eu não sei se
existem.
COPLESTON:
Mas, certamente, no caso dos demônios, tem havido gente que fala
principalmente de visões, aparições, anjos ou demônios, ou coisas assim. Eu excluiria as aparições
visuais, pois penso que elas podem ser explicadas independentemente da existência do objeto que
tais pessoas supõem ver.
RUSSELL:
Mas o senhor não acha que há abundantes registros de casos de pessoas
que acreditam ter ouvido Satanás falar-lhes no fundo de seus corações, exatamente do mesmo
modo que os místicos afirmam que se trata de Deus? E não me refiro agora a uma visão
exterior: refiro-me a urna experiência puramente mental. Isso
parece ser urna experiência da mesma espécie daquela que os místicos
experimentam com respeito a Deus, e não vejo de que maneira, através do que os
místicos nos dizem, possamos obter qualquer argumento a favor da existência de
Deus que não seja igualmente um argumento a favor de Satanás.
COPLESTON:
Concordo inteiramente, sem
dúvida, que certas pessoas imaginaram ou pensaram ter ouvido ou visto
Satanás. Mas não tenho desejo de passar a negar a existência de Satanás. Não
acho, porém, que tais pessoas hajam dito que sentiram a Satanás da maneira
precisa pela qual os místicos disseram que sentiram a Deus. Tomemos o caso de um não-cristão:
Plotino. Admite ele que tal experiência é inexprimível; o objeto é um objeto de amor e, por
conseguinte, não um objeto que cause horror e aversão. E o efeito
dessa experiência ressalta, ou, eu poderia dizer, a validade da
114
experiência
ressalta aos nossos olhos no próprio registro da vida de Plotino. De qualquer
modo, é mais razoável supor-se que ele teve tal experiência, se estivermos
dispostos a aceitar a descrição de Porfírio quanto à bondade e a
benevolência de Plotino.
RUSSELL:
O fato de uma crença exercer bom efeito moral sobre um homem não
constitui prova alguma
a favor de sua veracidade.
COPLESTON:
Não, mas se pudesse
verdadeiramente provar que a crença foi de fato responsável por uma boa
influência sobre a vida de um homem, eu consideraria tal fato como uma
pressuposição a favor de alguma verdade, pelo menos da parte positiva da crença, senão de sua
inteira validade. Mas, de qualquer modo, estou usando o caráter da vida como prova a favor da
veracidade e da sanidade
115
COPLESTON:
Em certo sentido, está amando um fantasma, não há dúvida... no sentido,
quero dizer, em que está amando X ou Y, que não existem. Mas, ao mesmo tempo, penso eu,
não é ao fantasma como tal que o jovem ama; ele percebe um valor real, uma idéia que
reconhece como objetivamente válida – e é isso que desperta o seu
amor.
RUSSELL:
Bem, nesse sentido, tínhamos antes os personagens de ficção.
COPLESTON:
Sim, em certo sentido, não há dúvida, está amando um fantasma. Mas, em
outro sentido,
está amando aquilo que percebe ser um valor.
O argumento moral
RUSSELL:
Mas o senhor certamente não está agora dizendo que tem relação com Deus
tudo o que é bom, ou a soma total do que é bom... o sistema do que é bom, e que, por
conseguinte, quando um jovem ama algo que é bom está amando a Deus, pois não? É isso que está
dizendo? – pois, se o for, isso está a exigir alguma discussão.
COPLESTON:
Não digo, por certo, que Deus é a soma total ou sistema do que é bom no
sentido panteísta. Não sou panteísta, mas penso que tudo o que é bom reflete Deus e procede
d’Ele, de modo que, em certo sentido, aquele que ama o que é verdadeiramente bom, ama a Deus,
mesmo que ele não atente em Deus. Mas, ainda assim, concordo em que a validade de tal
interpretação da conduta de um homem depende, obviamente, do
reconhecimento da existência de Deus.
RUSSELL:
Sim, mas esse é um ponto a ser provado.
COPLESTON:
Perfeitamente, mas encaro o argumento metafísico como probatório. Neste
ponto, porém,
divergimos.
RUSSELL:
Veja o senhor: acho que certas coisas são boas e outras são más. Amo as
coisas que são boas, e detesto as que são más. Não digo que essas coisas são boas
porque participam da bondade Divina.
COPLESTON:
Sim, mas qual é a sua justificativa para distinguir entre as coisas boas
e más, e como é que
considera a distinção existente entre elas?
RUSSELL:
Não tenho qualquer
justificativa, assim como não a tenho quando distingo entre o azul e o amarelo.
Qual a minha justificativa para distinguir entre o azul e o amarelo? Posso ver
que são diferentes.
116
COPLESTON:
Bem, essa é uma excelente justificativa, concordo. O senhor distingue
entre o azul e o
amarelo porque os vê. Assim sendo, por meio de que faculdade distingue o
bem do mal?
RUSSELL:
Pelos meus sentimentos.
COPLESTON:
Pelos seus sentimentos. Bem, era o que eu estava perguntando. Julga o
senhor que o bom e o
mau se referem simplesmente ao sentimento?
RUSSELL:
Por que, então, um tipo de objeto parece amarelo e o outro verde? Posso,
mais ou menos, dar uma resposta a isso graças aos físicos e, quanto ao motivo por que julgo
certas coisas boas e outras más, provavelmente existe uma resposta
da mesma espécie, mas ela não seguiu a mesma direção e não
posso dar-lhe.
COPLESTON:
Bem, tomemos, por exemplo, a conduta do comandante de Belsen. Essa
conduta parece ao senhor tão indesejável e má quanto a mim. Supomos que, para Adolf
Hitler, ela parecia algo bom e desejável. Creio que o senhor tem de
admitir que para Hitler ela era boa e, para o senhor, má.
RUSSELL:
Não. Eu não iria tão longe assim. Quero dizer: acho que as pessoas podem
cometer erros tanto nisso como em outras coisas. Se tivermos icterícia, veremos coisas
amarelas que não são amarelas. Estaremos cometendo um engano.
COPLESTON:
Sim, podemos cometer enganos, mas poderemos cometê-los, tratando-se
apenas de uma questão de referência a um sentimento ou emoção? Nesse caso, Hitler
seria o único juiz possível, quanto ao que se referia às suas
emoções.
RUSSELL:
Seria perfeitamente certo dizer-se que isso apelava para as suas
emoções, mas podemos dizer, entre outras várias coisas, que, se uma
coisa como aquela exercia influência sobre as emoções de Hitler,
exercem elas uma influência diversa sobre as minhas emoções.
COPLESTON:
De acordo. Mas então, a seu ver, não há nenhum critério objetivo, fora
do sentimento, para se
condenar a conduta do comandante de Belsen?
RUSSELL:
Não mais do que o critério que existe para se condenar as pessoas
daltônicas, que estão exatamente na mesma situação. Por que razão condenamos intelectualmente
a pessoa daltônica? Não é, acaso, porque constitui minoria?
COPLESTON:
Eu diria que é porque lhe falta algo que pertence, normalmente, à
natureza humana.
RUSSELL:
Sim, mas se tais pessoas
constituíssem maioria não diríamos isso.
117
COPLESTON:
O senhor diria, então, que não existe critério algum, fora do
sentimento, que nos permita distinguir entre a conduta do
comandante de Belsen e a conduta, digamos, de Sir Stafford Cripps ou do
Arcebispo de Cantuária.
RUSSELL:
Referirmo-nos apenas ao sentimento é simplificar, de maneira um tanto
excessiva, a coisa. Tem-se de levar em conta os efeitos das ações e os nossos sentimentos
com respeito a tais ações. Não nos é possível discutir sobre isso
se dissermos que certas espécies de ocorrências são da espécie
de que gostamos, e certas outras da espécie de que não gostamos. Podemos muito
bem dizer que as conseqüências das ações do comandante de Belsen foram
dolorosas e desagradáveis.
COPLESTON:
Foram, certamente, muito penosas e desagradáveis, concordo, para todas
as pessoas que se
achavam no acampamento.
RUSSELL:
Sim, mas não apenas para as pessoas que estavam no acampamento: também
para as que se
achavam fora a contemplá-las.
COPLESTON:
Sim, perfeitamente certo quanto à imaginação. Mas esse é o meu ponto de
vista. Não as aprovo, e sei que o senhor não as aprova, mas não vejo em que se baseia
o senhor para as não aprovar, porque, afinal de contas, para o próprio comandante de Belsen,
eram agradáveis tais ações.
RUSSELL:
Sim, mas, nesse caso, não preciso de outro motivo que aquele que me guia
na percepção das cores. Há pessoas que pensam que tudo é amarelo, há pessoas que sofrem
de icterícia, e não concordo com essas pessoas. Não posso provar que as coisas não são
amarelas – não há nenhuma prova disso – mas a maioria das pessoas concorda comigo que não são
amarelas, assim como a maioria das pessoas concorda comigo que o comandante de Belsen estava
cometendo erros.
COPLESTON:
O senhor aceita alguma obrigação moral?
RUSSELL:
Eu teria de estender-me demasiado, para responder a isso. Praticamente
falando – sim. Teoricamente falando, teria de definir com um pouco mais de cuidado o
que entendo por obrigação moral.
COPLESTON:
Acha o senhor que a palavra “dever” (ought) tem simplesmente uma implicação
emocional?
RUSSELL:
Não, não o acho, pois que,
como o senhor vê, eu dizia, ainda há pouco, que se tem de levar em conta
as conseqüências, e penso que a conduta correta é aquela que produziria,
provavelmente, o maior equilíbrio possível dos valores intrínsecos de todos os atos
possíveis em dadas circunstâncias, e que se tem de levar em conta os efeitos prováveis de
nossas ações, ao se considerar o que é direito.
119
RUSSELL:
Mas o legislador sempre foi, parece-me, o pai, ou a mãe da gente, ou
alguma outra pessoa. Há uma porção de legisladores terrenos responsáveis por isso – e isso
explicaria porque as consciências das pessoas são tão surpreendentemente
diferentes em época e lugares diferentes.
COPLESTON:
Isso nos ajuda a explicar diferenças quanto à percepção de valores
morais diferentes, as quais, de outro modo, seriam inexplicáveis. Ajudar-nos-á a explicar
diferenças, quanto à lei moral, no conteúdo dos preceitos, tais como
são aceitos por esta ou aquela nação, ou por este ou aquele indivíduo.
Mas a sua forma, aquilo a que Kant chama de imperativo categórico, o “ought”, não vejo, realmente,
de que maneira poderia ser transmitido a alguém por uma preceptora ou pelos
pais, pois que não há quaisquer termos possíveis, tanto quanto me é dado ver, pelos
quais possa ser explicada. Não pode ser definida por outra forma senão por si própria,
pois que, uma vez definida em outros termos que não os seus, se
dissipa. Já não é mais um “dever” (ought) moral.
É uma outra coisa.
RUSSELL:
Bem, penso que a consciência que se tem de “ought” é o
resultado da desaprovação imaginada
de alguém. E acho que isso é o que “ought” significa.
COPLESTON:
A mim me parece que os costumes exteriores, tabus e coisas desse gênero,
são os que podem ser mais facilmente explicados mediante simples referência a ambiente e
educação, mas tudo isso, penso eu, pertence ao que chamo a questão do direito, ao conteúdo. A
idéia de um dever moral, como tal, jamais pode ser transmitida a alguém pelo chefe tribal ou por
quem quer que seja, pois que não existem outros termos pelos quais possa ser transmitida...
(Russell intervém)
RUSSELL:
Mas não vejo razão alguma para se dizer que... O que quero dizer é que
todos nós conhecemos o que se refere a reflexos condicionados. Sabemos que se um
animal é habitualmente castigado por um determinado ato, abster-se-á, depois de algum tempo, de
praticá-lo. Não creio que o animal se abstenha por haver dito, em seu íntimo: “Meu dono ficará
zangado, se eu fizer isso”. Sente apenas que aquilo é uma coisa que
não deve fazer. Eis aí o que podemos fazer quanto ao que a nós se
refere – e nada mais.
COPLESTON:
Não vejo razão para supor que
um animal tenha consciência de uma obrigação moral; nós, certamente,
não consideramos um animal responsável moralmente por seus atos de desobediência. Mas o
homem tem consciência de sua obrigação e dos deveres morais. Não vejo razão
para que se suponha que se poderia impor condições a todos os homens como se
“condiciona” um animal, e não creio que se desejasse realmente
fazê-lo, mesmo que se pudesse. Mesmo que o “behaviorismo” fosse verdadeiro,
não haveria nenhuma distinção moral objetiva entre o imperador Nero e São
Francisco de Assis. Não me é possível deixar de sentir, Lorde Russell, que o
senhor considera a conduta do comandante de Belsen como sendo
igualmente repreensível, e que o senhor jamais, em circunstância
alguma, agiria desse modo, mesmo que achasse, ou tivesse razão para achar, que talvez a
soma total da felicidade humana pudesse ser aumentada, se certas pessoas fossem tratadas
daquela maneira abominável.
120
RUSSELL:
Não. Eu não imitaria a conduta de um cão louco. Mas isso não tem
qualquer relação com a
questão que estamos discutindo.
COPLESTON:
Não tem, com efeito. Mas se o senhor estivesse dando urna explicação
utilitária do bem e do mal segundo suas conseqüências, talvez pudesse afirmar – como creio que
certos nazistas mais extremados o fariam – que, embora fosse lamentável agir desse modo, o
resultado, no fim, conduziria a uma maior felicidade. Não creio que o senhor afirmasse tal
coisa, pois não? Penso que o senhor diria que tal conduta é
errada... e isso por si mesmo, inteiramente independente de poder ou não
aumentar a soma total da felicidade humana. Nesse caso, se está preparado para
dizer isso, devo pensar que o senhor deve ter algum critério para julgar o que é
certo e o que é errado – o que, de qualquer modo, isso está fora de
qualquer critério de sentimento. Para mim, tal admissão resultaria,
em última análise, na admissão de um critério último de valor baseado em Deus.
RUSSELL:
Acho que talvez estejamos nos metendo em confusão. Eu não julgaria
movido por um sentimento direto acerca do ato, mas antes por um sentimento quanto às
suas conseqüências. E não posso admitir a existência de quaisquer circunstâncias em que certas
espécies de conduta, tais como as que o senhor esteve discutindo, seriam boas. Não posso imaginar
circunstâncias em que tivessem efeito benéfico. Penso que aqueles que assim julgam estão
enganando a si próprios. Mas se existissem circunstâncias em que elas
tivessem efeito benéfico, então eu talvez fosse obrigado a dizer:
“Bem, não me agradam essas coisas, mas tenho de concordar com elas”, assim como concordo
com o Direito Penal, embora me desagrade profundamente o castigo.
COPLESTON:
Bem, talvez já seja tempo de resumir o meu ponto de vista. Defendi dois
pontos. Primeiro, que a existência de Deus pode ser provada filosoficamente por um argumento
metafísico; segundo, que é somente a existência de Deus que dará sentido à experiência moral e à
experiência religiosa do homem. Pessoalmente, acho que a sua maneira de explicar os juízos morais
do homem conduz, inevitavelmente, a urna contradição entre o que a sua teoria exige e os
seus próprios juízos espontâneos. Ademais, sua teoria invalida a obrigação moral e, assim,
não constitui uma explicação. Quanto ao argumento metafísico, estamos, ao que parece, de
acordo, ao achar que o mundo consiste simplesmente de seres contingentes. Isto é, de seres que
não podem, nenhum deles, explicar sua própria existência. Diz o senhor que a série de
acontecimentos não precisa de explicação; eu digo que se não
existisse um ser necessário – um ser que deve existir e que não possa
não-existir – nada existiria. A infinidade da série de seres contingentes,
mesmo se provada, seria irrelevante. Algo existe; por conseguinte, deve haver alguma coisa
responsável por esse fato, um ser que esteja fora da série dos
seres contingentes. Se o senhor houvesse admitido isso, poderíamos,
então, ter discutido se esse ser é pessoal, bom, é assim por diante. Quanto ao
ponto verdadeiramente em discussão se existe ou não um ser necessário – estou
de acordo, creio eu, com a grande maioria dos filósofos clássicos.
Diz o senhor, penso eu, que
os seres existentes simplesmente aí estão, e que nada justifica que eu
suscite a questão da explicação da sua existência. Mas eu gostaria de ressaltar
que tal ponto de vista não pode ser substanciado pela análise lógica; expressa uma
filosofia que necessita, ela mesma, de prova. Penso que chegamos a
um impasse porque nossas idéias de filosofia são
121
radicalmente
diferentes; parece que aquilo a que chamo uma parte da filosofia, o senhor
chama o todo, pelo menos quanto ao que diz respeito ao que há de racional na
filosofia. Parece-me, se me perdoa dizê-lo, que, além de seu
próprio sistema lógico – a que o senhor chama “moderno” em oposição
à lógica antiquada (um adjetivo tendencioso) – o senhor defende uma filosofia
que não pode ser substanciada pela análise lógica. Afinal de contas, o problema
da existência de Deus é um problema existencial, enquanto que a
análise lógica não trata diretamente dos problemas de existência.
De modo que, parece-me, declarar que os termos implicados num conjunto de problemas
não são significativos porque não são exigidos ao tratar-se de outro conjunto
de problemas, é estabelecer, desde o começo, a natureza e a extensão da
filosofia, e esse é, em si, um ato filosófico que está a exigir
justificação.
RUSSELL:
Bem, eu gostaria, de minha parte, de dizer apenas algumas palavras, à
guisa de resumo. Primeiro, quanto ao que concerne ao argumento metafísico: não admito as
conotações de um termo como “contingente” ou a possibilidade de explicação no sentido que lhe
dá o Padre Copleston. Penso que a palavra “contingente” sugere
inevitavelmente a possibilidade de algo que não teria isso que o senhor
poderia chamar de caráter acidental de apenas “estar aí”, e não creio que isso
seja verdadeiro, exceto no sentido puramente causal. Pode-se às vezes, dar
uma explicação causal de uma coisa como sendo o efeito de uma outra coisa, mas isso é
simplesmente referir uma coisa a outra, e não há – a meu ver –
explicação alguma no sentido dado pelo Padre Copleston, como, também,
não existe qualquer sentido em se chamar às coisas “contingentes”, pois que não
há outra coisa que elas pudessem ser. Eis aí o que eu diria a esse respeito, mas
gostaria de acrescentar ainda algumas palavras com referência à acusação do Padre Copleston de
que encaro a lógica como constituindo toda a filosofia – o que não é, de modo algum, o caso. De
modo algum considero a lógica como constituindo toda a filosofia. Acho que a lógica é uma parte
essencial da filosofia, e que a lógica tem de ser usada na filosofia
– e penso que, quanto a isso, ele e eu estamos de acordo. Quando a
lógica que ele usa era nova – isto é, no tempo de Aristóteles, precisou haver
muito barulho em torno dela; Aristóteles fez muito barulho a respeito de tal
lógica. A lógica em que creio é relativamente nova; mas não é certo que
eu creia, de modo algum, que ela constitua toda a filosofia. Não é
isso que penso. O que penso é que ela é uma parte importante da filosofia, e
quando digo que não encontro sentido nesta ou naquela palavra, isso é um ponto de vista
acerca de um pormenor, baseado no que verifiquei acerca dessa determinada palavra, ao refletir
sobre ela. Não é um ponto de vista geral, de que todas as palavras usadas na metafísica são
tolices ou coisa semelhante – coisa que, na verdade, não afirmo.
Quanto ao que se refere ao argumento moral,
verifico, ao estudar antropologia ou história, que há pessoas que julgam seu dever praticar atos que
considero abomináveis e, certamente, não posso, por conseguinte, atribuir origem Divina à
questão da obrigação moral, o que o Padre Copleston não me pede que faça; mas acho que mesmo a
forma de obrigação moral, quando nos incite a comer a carne de nosso pai ou coisas
semelhantes, não parece ser uma coisa muito bela e nobre – e, por
conseguinte, não posso atribuir uma origem Divina a esse sentimento de
obrigação moral, o qual, penso,
é facilmente explicável de outras maneiras inteiramente diversas
Muito bom! Altíssimo nível.
ResponderExcluirGrato. Lembranças ao seu marido.
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